domingo, 3 de janeiro de 2016

A alvorada

As luzes da lanterna ascendiam e apagavam num tremeluzente archote de cabo à pouco mais que uma fagulha no crepúsculo vindouro. O dia tardava a escurecer como se estivesse congelado.

Um barulho de congestionamento amontoava uma mórbida surdez a poucos metros e a mão descia pelo volante até pegar a chave da ignição. Não dava para fazer turismo naquele lugar, pelo menos era assim que pensava sempre que chegava a um posto de abastecimento. O diesel deve estar caro como sempre, mas isso não compensava o bom humor de um novo frete à custa do aluguel do caminhão.
Resolver esperar era o que podia fazer mesmo que não estivesse muito afim. Algumas palavras escorreram quando viu com o frentista que ajudava a mangueira da bomba. “Pelo menos esse esforço eu não faço”, pensara. Até sua cabeça estava farto de problemas para resolver, e este seria num mínimo uma brincadeira como trocar correntes, trocar pneu, remendar o cabeçote do motor e por aí vai.

A graxa ainda estava em suas mãos da última parada pela tarde regada por uma peça defeituosa, uma rápida esfregada com o sabão do banheiro e reduziu ainda mais, embora não por completo, o resquício do cheiro distinto. Uma campainha soou mais à frente ao momento que agora seus pés pararam. “Quem podia imaginar que um pão dormido pode ser tão saboroso”? Era uma das perguntas que não tinha resposta a um estômago que não parava de ranger. Mesmo que não fosse seu desjejum a massa caiu bem junto com um café morno com duas colheradas de leite.

Ao voltar ao caminhão deteve-se a fila de automóveis que entravam no posto, muitos com vidros escuros tipo fumê, outros ainda eram blindados. Verificar as lanternas traseiras, duas a costa da roda direita traseira precisavam de troca, mas isso podia esperar. Ao dar a volta completa pelo carro nem se importou em encostar-se no metal embrulhado de poeira e sujeira incrustrado nas dobras e rebites do baú do caminhão.

Um barulho de repente reverberava e alguns olhos procuravam sua origem no telefone público a sua frente até que depois de alguns toques ninguém mais lhe dava importância. O som continuava a pique até que por uma insistência sua em ir e não ir pegou o telefone. A sua surpresa, uma voz feminina mansa e delicada quase infantil pedia que ele olha-se para uma direção onde ficava um conjunto de prédios habitacionais do outro lado da rua. Quando o pôs via a forma de uma pessoa a agitar os braços da janela do segundo andar. Ao chão, o edifício estava coberto por algumas árvores compridas e floridas. Ao aproximar-se viu o nome do singular prédio que mais parecia comum aos dos seus vizinhos em fisionomia e batizado, São Gabriel. São Marcos e Santo Antônio eram os demais. Deteve-se a porta do São Gabriel e uma sentinela olhou-o de esguio. “Pois não”? A jovem voz do telefone deu o número do apartamento. Ele repetiu àquele homem gordo de aparência severa e que guardava um bastão atrás da mesa – fora o que viu depois de o homem ter tocado o interfone do apartamento desejado.

A um corredor de distância, um pensamento mais forte que o que o deparou diante do telefone público tomou conta a um medo desconhecido. Natural ao primeiro instante, entretanto, agora fazia o coração declinar até ter se lembrado de uma excitante história contada por um colega que certa vez se deixou levar por estas ligações secretas pelo telefone público terminado em um sexo com um casal. Um homem e uma mulher o convidaram à cama. A mulher se deixou entregar aos membros viris dos homens pela frente e à trás. Depois o casal confidenciou-o de que tinham posto o número de um dos celulares deles no telefone da rua. A história por um momento o excitou antes de imaginar um assalto, ou uma armadilha.

Um clarão ascendeu quase que subitamente quando suas pálpebras abriram ainda com uma penosa força de algo que não sabia explicar. O tempo que havia passado ao abrir a porta do quarto até aquele momento não sabia dizer. Embora, lembrava-se de ter encontrado aquela forma que vira na janela; sua aparência era de uma mulher pelo menos podia dizer, e a voz parecia ser tão agradável quanto no telefone. Pela janela viu o caminhão estacionado, o posto de gasolina e os demais carros em trânsito. A mulher lhe ofereceu água e um assento no sofá; a televisão estava ligada, e o jornal local transmitia uma entrevista com um policial rodoviário alertando aos motoristas em casos de assaltos nas estradas de como reagir. “Estúpido” pensou. “Cada um reage de uma maneira... O azar ou a sorte do salteador está na reação da vítima”.

Agora, mesmo esses momentos passaram rápidos demais. Ao beber a água, soltou um sorriso à mulher. Mas, estranhamente ela apenas virou a cabeça e fez menção de dizer algo para explicar aquela situação –. Pelo menos era isso que ele imaginava. O clarão cedeu e enquanto seus olhos se acostumavam com o breu sentiu uma forte pontada ao redor do peito descendo pela barriga, quando se pôs a observar melhor viu que seu corpo estava retalhado com uma enorme incisão frontal aberta rodeada de gelo e resto de sangue seco pela barriga. Algo correu de pânico aterrador por seus braços e pernas como se quisesse pular daquela maca fria e triste, mas não conseguia por mais que tentasse até que cedeu e uma sensação de que perdera algo de dentro si assomou a um arrepio gélido em sua face quando viu de fato ainda que não acreditasse que suas entranhas estavam expostas. Ao se dar conta disso, notou um telefone fora do ganho apitando em som como uma linha reta, dando sinal, e um bilhete com um número que ele miseravelmente compreendeu: “Disque SAMU: 192”. Grafado no papel em letras tortas como sua cabeça julgaria em volta do endereço depositado ali de que não fosse mais aquele em que entrara. O caminhão, aquele posto de gasolina já estariam bem longe daquele quarto úmido e escuro. No entanto, nada dava a crer que já era um novo dia afora.

Neste dia uma tevê dava uma notícia aterradora Uma voz de mulher sisuda e ponderada como se pontuasse em um texto cada frase em sua fala informava que um homem foi encontrado por paramédicos em um quarto isolado a muitos quilômetros da rodovia; e que ele era uma vítima de uma quadrilha que roubava órgãos. A polícia dizia que com ele já somavam treze o número de casos na região; também, que no dia seguinte as autoridades iriam anunciar um retrato falado de um suspeito.