As luzes da lanterna ascendiam e apagavam num tremeluzente
archote de cabo à pouco mais que uma fagulha no crepúsculo vindouro. O dia
tardava a escurecer como se estivesse congelado.
Um barulho de congestionamento amontoava uma mórbida surdez
a poucos metros e a mão descia pelo volante até pegar a chave da ignição. Não
dava para fazer turismo naquele lugar, pelo menos era assim que pensava sempre
que chegava a um posto de abastecimento. O diesel deve estar caro como sempre,
mas isso não compensava o bom humor de um novo frete à custa do aluguel do
caminhão.
Resolver esperar era o que podia fazer mesmo que não
estivesse muito afim. Algumas palavras escorreram quando viu com o frentista
que ajudava a mangueira da bomba. “Pelo menos esse esforço eu não faço”,
pensara. Até sua cabeça estava farto de problemas para resolver, e este seria
num mínimo uma brincadeira como trocar correntes, trocar pneu, remendar o
cabeçote do motor e por aí vai.
A graxa ainda estava em suas mãos da última parada pela
tarde regada por uma peça defeituosa, uma rápida esfregada com o sabão do
banheiro e reduziu ainda mais, embora não por completo, o resquício do cheiro
distinto. Uma campainha soou mais à frente ao momento que agora seus pés
pararam. “Quem podia imaginar que um pão dormido pode ser tão saboroso”? Era
uma das perguntas que não tinha resposta a um estômago que não parava de
ranger. Mesmo que não fosse seu desjejum a massa caiu bem junto com um café
morno com duas colheradas de leite.
Ao voltar ao caminhão deteve-se a fila de automóveis que
entravam no posto, muitos com vidros escuros tipo fumê, outros ainda eram
blindados. Verificar as lanternas traseiras, duas a costa da roda direita traseira
precisavam de troca, mas isso podia esperar. Ao dar a volta completa pelo carro
nem se importou em encostar-se no metal embrulhado de poeira e sujeira
incrustrado nas dobras e rebites do baú do caminhão.
Um barulho de repente reverberava e alguns olhos procuravam
sua origem no telefone público a sua frente até que depois de alguns toques
ninguém mais lhe dava importância. O som continuava a pique até que por uma
insistência sua em ir e não ir pegou o telefone. A sua surpresa, uma voz
feminina mansa e delicada quase infantil pedia que ele olha-se para uma direção
onde ficava um conjunto de prédios habitacionais do outro lado da rua. Quando o
pôs via a forma de uma pessoa a agitar os braços da janela do segundo andar. Ao
chão, o edifício estava coberto por algumas árvores compridas e floridas. Ao
aproximar-se viu o nome do singular prédio que mais parecia comum aos dos seus
vizinhos em fisionomia e batizado, São Gabriel. São Marcos e Santo Antônio eram
os demais. Deteve-se a porta do São Gabriel e uma sentinela olhou-o de esguio.
“Pois não”? A jovem voz do telefone deu o número do apartamento. Ele repetiu àquele
homem gordo de aparência severa e que guardava um bastão atrás da mesa – fora o
que viu depois de o homem ter tocado o interfone do apartamento desejado.
A um corredor de distância, um pensamento mais forte que o
que o deparou diante do telefone público tomou conta a um medo desconhecido. Natural
ao primeiro instante, entretanto, agora fazia o coração declinar até ter se
lembrado de uma excitante história contada por um colega que certa vez se
deixou levar por estas ligações secretas pelo telefone público terminado em um
sexo com um casal. Um homem e uma mulher o convidaram à cama. A mulher se
deixou entregar aos membros viris dos homens pela frente e à trás. Depois o
casal confidenciou-o de que tinham posto o número de um dos celulares deles no
telefone da rua. A história por um momento o excitou antes de imaginar um
assalto, ou uma armadilha.
Um clarão ascendeu quase que subitamente quando suas
pálpebras abriram ainda com uma penosa força de algo que não sabia explicar. O
tempo que havia passado ao abrir a porta do quarto até aquele momento não sabia
dizer. Embora, lembrava-se de ter encontrado aquela forma que vira na janela;
sua aparência era de uma mulher pelo menos podia dizer, e a voz parecia ser tão
agradável quanto no telefone. Pela janela viu o caminhão estacionado, o posto
de gasolina e os demais carros em trânsito. A mulher lhe ofereceu água e um
assento no sofá; a televisão estava ligada, e o jornal local transmitia uma
entrevista com um policial rodoviário alertando aos motoristas em casos de
assaltos nas estradas de como reagir. “Estúpido” pensou. “Cada um reage de uma
maneira... O azar ou a sorte do salteador está na reação da vítima”.
Agora, mesmo esses momentos passaram rápidos demais. Ao beber
a água, soltou um sorriso à mulher. Mas, estranhamente ela apenas virou a
cabeça e fez menção de dizer algo para explicar aquela situação –. Pelo menos
era isso que ele imaginava. O clarão cedeu e enquanto seus olhos se acostumavam
com o breu sentiu uma forte pontada ao redor do peito descendo pela barriga,
quando se pôs a observar melhor viu que seu corpo estava retalhado com uma
enorme incisão frontal aberta rodeada de gelo e resto de sangue seco pela
barriga. Algo correu de pânico aterrador por seus braços e pernas como se
quisesse pular daquela maca fria e triste, mas não conseguia por mais que
tentasse até que cedeu e uma sensação de que perdera algo de dentro si assomou
a um arrepio gélido em sua face quando viu de fato ainda que não acreditasse
que suas entranhas estavam expostas. Ao se dar conta disso, notou um telefone
fora do ganho apitando em som como uma linha reta, dando sinal, e um bilhete
com um número que ele miseravelmente compreendeu: “Disque SAMU: 192”. Grafado
no papel em letras tortas como sua cabeça julgaria em volta do endereço
depositado ali de que não fosse mais aquele em que entrara. O caminhão, aquele
posto de gasolina já estariam bem longe daquele quarto úmido e escuro. No
entanto, nada dava a crer que já era um novo dia afora.
Neste dia uma tevê dava uma notícia aterradora Uma voz de
mulher sisuda e ponderada como se pontuasse em um texto cada frase em sua fala
informava que um homem foi encontrado por paramédicos em um quarto isolado a
muitos quilômetros da rodovia; e que ele era uma vítima de uma quadrilha que
roubava órgãos. A polícia dizia que com ele já somavam treze o número de casos na
região; também, que no dia seguinte as autoridades iriam anunciar um retrato
falado de um suspeito.