“Casa, casita,
casinha, casarão”... Em algum livro de português que a criança dera-lhe para
ver, a tipografia ilustrava um parágrafo sobre palavras derivadas de uma raiz:
“casa”. Ali, naquela outra casa real de dois andares dividida por um assoalho
de madeira, seus hirsutos pés nus tocavam o chão pintado a cal de cor de azul
celeste enegrecida pelos cantos da parede, enquanto uma lâmpada incandescente
tremeluzia abafada pela forte umidade encerada pela madeira poeirenta no teto. Acabou
por pensar em casita, um termo anômalo,
que ouviu há muito tempo atrás de boliviano que fala de sua casita, sua aldeia
nos Andes, seu infortúnio... Talvez aquela palavra ali estivesse errada em uma
gramática portuguesa; pensou em protestar, quando se viu instruindo à criança:
– Fale casita!
– Ca-si-ta. Casita. – Disse a criança.
A criança falara por um tempo até ser posta na rede e
adormecer aos sons de uma voz feminina cantarolando partes de uma música que a
repetia sempre que acabava a parte lembrada.
Ele desceu os dois degraus da porta da frente deparando-se
num beco, no meio do chão corria uma valeta ainda cheia pelas chuvas do dia
anterior dando a uma passagem mais larga, como se fosse uma rua. Seguiu o caminho
indo até o carro estacionado à frente ao lado de um poste cinzento coroado em
cima com argolas em ferro sobre a textura de concreto.
Abriu a porta, revirou as gavetas e encontrou alguns pacotes
em forma de um quadrado. Tirou uns quatro e pôs em sua carteira no bolso
direito da bermuda de tecido grosso. A camisa balança sobre seu dorso em uma
flâmula quando o vento um pouco mais forte passou ao fechar a porta antes de se
esquecer de que devia acionar o alarme.
O som ficou no ar enquanto seus passos retornavam a porta
amarela da casa. Abriu levemente evitando o menor barulho e depois fechou
engatando a fechadura na porta frontal, e o trinco e o cadeado no portão em
seguida. Encontrou a mulher assistindo tevê. Um programa qualquer de variedades
em que de vez em quando apareciam mulheres seminuas dançando no palco ou em
banheiras à procura de sabonetes em disputas com homens no mesmo estado.
A tevê foi desligada.
– Você não disse o porquê de sua viagem inesperada... Apenas
falou que era pra trabalho? – A mulher fez uma lisura pegando seu braço e lhe
apontando para escada. – Sim... Era isso. Sabe meu amigo, ele me entregou uma
carga para ser descarregada na cidade vizinha... – ela não o deixou terminar.
Apenas disse o de costume: “sei... sei”.
O último degrau raspava seus pés descalços pelas tábuas
feita lixas. Mas, estava feliz com a situação quando algo veio de fora. Uma voz
de autofalante ressonava uma canção cigana pelo que depois ele veio entender,
algo gravado de uma apresentação do grupo em Mato Grosso. De tempos em tempos o
vocal agitava o público dizendo: “as milionárias” em um chiado e um uivo
afinando a voz no final como um gato gemendo. “Isso pode passar”, pensou,
olhando os olhos castanhos vivos da mulher que se sentou na cama.
“Um metro e setenta e cinco de puro sabor”, começou a música
do lado de fora, embora o refrão não fosse distante de seus ouvidos. Em algum
lugar ele também já ouvira em outra música algo como: “um sessenta de doce
veneno”. Isso era bem distante dali. E em ambas a letra a saudação era a uma
mulher que provocava um segundo olhar em homens que se inspiraram para elaborar
as canções. Ele, contudo, sentia que não precisava delas para adorar o corpo
daquela mulher que agora apanhava a escova de cabelo para fazer redemoinhos em
suas madeixas lisas, negras como o céu noturno sem nuvens. E suas medidas
exatas eram também desconhecidas: altura, peso, busto, coxa, cintura.... Que
isso interessaria senão para músicos que pareciam ver sua musa como um pedaço
de carne, etiquetado para ser consumido? Mais isso talvez colaborasse com os
olhares que a mulher lhe deu, ao menos parecia que sentia um desejo de ser
carne, devorada com os olhos e atacada, e ele também.
Um barulho de algo sendo sugado e depois um solavanco, e um
primeiro gemido... Uma criança começou a chorar e depois gritar: “Mãe, mãe”...
Os barulhos vieram de baixo. Os parceiros se desenroscaram, e a mulher levantou
a calcinha presa à perna e o vestido embrulhado nos seios. Ela usava um vestido
floral sem alça, nu nos ombros que davam para ver parte de seus seios e davam a
forma dos bicos de seus mamilos; os dois bicos que ele contemplará algumas
noites. A mulher desceu as escadas rapidamente indo acudir a criança.
O corpo do homem, no entanto, ainda estava estendido na cama
bagunçada entre o lençol e a cobertor. Pesado e frouxo com a barriga em duas banhas
de gorduras achatando o umbigo. Seu corpo nu ainda não queria se levantar. A
cueca ainda estava no chão, então a ignorou e pegou a calça de poliéster e
algodão que estava quase para cair da cama. O esforço o deixou estranhamente
cansado enquanto sua barriga comprimia-se e seus ouvidos escutavam novamente
“as milionárias”. – Que diabo! – quase imaginou em fechar a janela frontal
mesmo que lhe custasse à claridade do sol que devia se esconder entre as nuvens
a julgar sua intensidade no quarto. Ao vestir seus calções, o seu membro viril
escapuliu entre o elástico da cintura atingindo sua pele com um baque surdo.
Daqui a pouco amolece – pensou enquanto se agachava para descobrir a cueca
debaixo da cama, estendendo a mão para pegá-la e virando-se para encontrar a
carteira no criado-mudo –. Não tirara
nenhum dos pacotes apesar da ejaculação e a cama molhada com algumas gotas de
sêmen. “Depois seca”. – ignorou em um meio sorriso vazio.
Ao sair finalmente da cama pegou-se parado a meio caminho da
janela. Estava preso ouvindo a porta da geladeira embaixo, depois o fogão ser
acesso, e uma panela indo ao fogo. “Vai demorar... Posso voltar à cama, ou
assistir tevê”!
Era um domingo, um dia de descanso e prazer. De todo jeito o
apresentador do programa anunciava o festival de câmeras escondidas que
filmavam outras pessoas sendo assustadas ou tombando. Ele achava graça das
pessoas caindo no chão, talvez sem dar conta da gravidade dos hematomas. Estava
passando no horário das brincadeiras, e isso é tudo que ele precisava saber.
O tempo foi passando e mulher continuava na cozinha. Parecia
que não ia ter mais nada a tarde. As graças acabaram e agora o apresentador
preparava-se para o novo quadro em que o artista de televisão mostrava sua
casa; uma nova propaganda e uma nova cor. A casa em que estava não era sua, era
da mulher, e alugada.
Um caminhão era a casa dele, ele dormia na cabine, mas agora
estava dormindo no sofá de pele falsa e mofado, mas feliz.