domingo, 3 de janeiro de 2016

A casa de concreto

“Casa, casita, casinha, casarão”... Em algum livro de português que a criança dera-lhe para ver, a tipografia ilustrava um parágrafo sobre palavras derivadas de uma raiz: “casa”. Ali, naquela outra casa real de dois andares dividida por um assoalho de madeira, seus hirsutos pés nus tocavam o chão pintado a cal de cor de azul celeste enegrecida pelos cantos da parede, enquanto uma lâmpada incandescente tremeluzia abafada pela forte umidade encerada pela madeira poeirenta no teto. Acabou por pensar em casita, um termo anômalo, que ouviu há muito tempo atrás de boliviano que fala de sua casita, sua aldeia nos Andes, seu infortúnio... Talvez aquela palavra ali estivesse errada em uma gramática portuguesa; pensou em protestar, quando se viu instruindo à criança:

– Fale casita!

– Ca-si-ta. Casita. – Disse a criança.

A criança falara por um tempo até ser posta na rede e adormecer aos sons de uma voz feminina cantarolando partes de uma música que a repetia sempre que acabava a parte lembrada.

Ele desceu os dois degraus da porta da frente deparando-se num beco, no meio do chão corria uma valeta ainda cheia pelas chuvas do dia anterior dando a uma passagem mais larga, como se fosse uma rua. Seguiu o caminho indo até o carro estacionado à frente ao lado de um poste cinzento coroado em cima com argolas em ferro sobre a textura de concreto.

Abriu a porta, revirou as gavetas e encontrou alguns pacotes em forma de um quadrado. Tirou uns quatro e pôs em sua carteira no bolso direito da bermuda de tecido grosso. A camisa balança sobre seu dorso em uma flâmula quando o vento um pouco mais forte passou ao fechar a porta antes de se esquecer de que devia acionar o alarme.

O som ficou no ar enquanto seus passos retornavam a porta amarela da casa. Abriu levemente evitando o menor barulho e depois fechou engatando a fechadura na porta frontal, e o trinco e o cadeado no portão em seguida. Encontrou a mulher assistindo tevê. Um programa qualquer de variedades em que de vez em quando apareciam mulheres seminuas dançando no palco ou em banheiras à procura de sabonetes em disputas com homens no mesmo estado.

A tevê foi desligada.

– Você não disse o porquê de sua viagem inesperada... Apenas falou que era pra trabalho? – A mulher fez uma lisura pegando seu braço e lhe apontando para escada. – Sim... Era isso. Sabe meu amigo, ele me entregou uma carga para ser descarregada na cidade vizinha... – ela não o deixou terminar. Apenas disse o de costume: “sei... sei”.

O último degrau raspava seus pés descalços pelas tábuas feita lixas. Mas, estava feliz com a situação quando algo veio de fora. Uma voz de autofalante ressonava uma canção cigana pelo que depois ele veio entender, algo gravado de uma apresentação do grupo em Mato Grosso. De tempos em tempos o vocal agitava o público dizendo: “as milionárias” em um chiado e um uivo afinando a voz no final como um gato gemendo. “Isso pode passar”, pensou, olhando os olhos castanhos vivos da mulher que se sentou na cama.

“Um metro e setenta e cinco de puro sabor”, começou a música do lado de fora, embora o refrão não fosse distante de seus ouvidos. Em algum lugar ele também já ouvira em outra música algo como: “um sessenta de doce veneno”. Isso era bem distante dali. E em ambas a letra a saudação era a uma mulher que provocava um segundo olhar em homens que se inspiraram para elaborar as canções. Ele, contudo, sentia que não precisava delas para adorar o corpo daquela mulher que agora apanhava a escova de cabelo para fazer redemoinhos em suas madeixas lisas, negras como o céu noturno sem nuvens. E suas medidas exatas eram também desconhecidas: altura, peso, busto, coxa, cintura.... Que isso interessaria senão para músicos que pareciam ver sua musa como um pedaço de carne, etiquetado para ser consumido? Mais isso talvez colaborasse com os olhares que a mulher lhe deu, ao menos parecia que sentia um desejo de ser carne, devorada com os olhos e atacada, e ele também. 
Um barulho de algo sendo sugado e depois um solavanco, e um primeiro gemido... Uma criança começou a chorar e depois gritar: “Mãe, mãe”... Os barulhos vieram de baixo. Os parceiros se desenroscaram, e a mulher levantou a calcinha presa à perna e o vestido embrulhado nos seios. Ela usava um vestido floral sem alça, nu nos ombros que davam para ver parte de seus seios e davam a forma dos bicos de seus mamilos; os dois bicos que ele contemplará algumas noites. A mulher desceu as escadas rapidamente indo acudir a criança.  

O corpo do homem, no entanto, ainda estava estendido na cama bagunçada entre o lençol e a cobertor. Pesado e frouxo com a barriga em duas banhas de gorduras achatando o umbigo. Seu corpo nu ainda não queria se levantar. A cueca ainda estava no chão, então a ignorou e pegou a calça de poliéster e algodão que estava quase para cair da cama. O esforço o deixou estranhamente cansado enquanto sua barriga comprimia-se e seus ouvidos escutavam novamente “as milionárias”. – Que diabo! – quase imaginou em fechar a janela frontal mesmo que lhe custasse à claridade do sol que devia se esconder entre as nuvens a julgar sua intensidade no quarto. Ao vestir seus calções, o seu membro viril escapuliu entre o elástico da cintura atingindo sua pele com um baque surdo. Daqui a pouco amolece – pensou enquanto se agachava para descobrir a cueca debaixo da cama, estendendo a mão para pegá-la e virando-se para encontrar a carteira no criado-mudo –.  Não tirara nenhum dos pacotes apesar da ejaculação e a cama molhada com algumas gotas de sêmen. “Depois seca”. – ignorou em um meio sorriso vazio.

Ao sair finalmente da cama pegou-se parado a meio caminho da janela. Estava preso ouvindo a porta da geladeira embaixo, depois o fogão ser acesso, e uma panela indo ao fogo. “Vai demorar... Posso voltar à cama, ou assistir tevê”!

Era um domingo, um dia de descanso e prazer. De todo jeito o apresentador do programa anunciava o festival de câmeras escondidas que filmavam outras pessoas sendo assustadas ou tombando. Ele achava graça das pessoas caindo no chão, talvez sem dar conta da gravidade dos hematomas. Estava passando no horário das brincadeiras, e isso é tudo que ele precisava saber.

O tempo foi passando e mulher continuava na cozinha. Parecia que não ia ter mais nada a tarde. As graças acabaram e agora o apresentador preparava-se para o novo quadro em que o artista de televisão mostrava sua casa; uma nova propaganda e uma nova cor. A casa em que estava não era sua, era da mulher, e alugada.


Um caminhão era a casa dele, ele dormia na cabine, mas agora estava dormindo no sofá de pele falsa e mofado, mas feliz.